Estou bem acompanhado...!

terça-feira, 12 de abril de 2011

Eu conto-vos um conto!

Uma canção de Amor


Segunda-feira. João decidiu naquela manhã ignorar o despertador que lhe berrava desde as seis horas. Quis sentir-se rebelde, sem regras, sem horários para nada. Ali, deitado na cama ao lado da sua eterna Maria, queria desfrutar de tudo o que a vida lhe tinha dado. João observava o seu sono profundo, contemplando as suas feições belas e o seu perfil de sereia.

Do outro lado do colchão, a sua eterna Maria ressonava profundamente… Naquela mesa-de-cabeceira permanecia a luz de um candeeiro, acesa desde a noite anterior, que fazia companhia a um cinzeiro sobrelotado. Era uma mesa redonda, com uns restos de chocolate das várias vésperas, que ia estando inclinada para dentro, para o lado da cama. De tal forma inclinada que o comando da TV foi acompanhando o desnível em direcção à cama para se ir encostar ao nariz de Maria. A imagem de desconforto era de tal forma evidente que, se o Fernandinho ou a Belimundazinha decidissem entrar pelo quarto dentro, provavelmente se perguntariam por onde é que a mamã conseguiria respirar…

Mas a verdade é que respirava. Senão, não ressonaria tanto….

A cama tremia com o ressonar de Maria. Todo aquele corpo pesadão dançava com uma violência ritmada. Inspirava, e depois…. Ex...pi…ra…va… Inspirava, deixava o sol brilhar lá fora, os pássaros cantar, as crianças correr pela casa, deixava DaVinci terminar a capela Sistina com todo o tempo do Mundo, deixava até Pedro Abrunhosa inventar uma música nova em que mais de quatrocentas palavras se uniam e formavam uma melodia anarquicamente complexa e talvez até demais para os Deolinda… Mas depois…ex…pi…ra…va! Trevas! Trovões! Guerra dos Mundos! Invasões napoleónicas com tanques de guerra! Uma Kalashnikov a disparar sem alvo! Pim-pam-PUM! Tsunami! Cá vai bomba!

Mas João já estava atrasado! Não podia continuar na cama porque alguém tinha de trazer o dinheiro no fim do mês, e essa não poderia ser uma tarefa para a sua Maria, coitadinha, que tinha sempre tanto sono… Por isso, deixou a “ronha” que já se prolongava há dois minutos e cinquenta e oito segundos, tirou os óculos da sua mesinha-de-cabeceira e arrumou um bocadinho melhor o livro que lá estava, só para não cansar a sua amada quando ela acordasse. Ergueu as costas e sentou-se com os pés para fora da cama, sacudiu logo a almofadinha e espreguiçou-se baixinho, para não incomodar a sua bela adormecida, que ele tanto contemplava…. Era incrível, para João, observar que a sua Mariazinha conseguia estar cada vez mais bonita e saudável com o passar dos anos! E ali ficou, cerca de vinte e cinco minutos, a contemplar a sua mais-que-tudo, a sua florzinha, o seu texugo, a sua sereia delgadinha e perfeitinha…

Entretanto, Fernandinho e Belimundazinha brincavam aos Legos na sala. Mas só enquanto a mamã inspirava… Depois disso, a diversão passava por reconstruir o castelo do General Bigodes e esperar pelo novo terramoto!

A estadia de João na casa de banho demorou catorze segundos e picos. Aí, fez a barba – “que não tenho mas preciso de tirar, não vá isto começar a crescer a meio de uma reunião importante e depois eu vou ter de sair a correr e ir em direcção a uma casa de banho e remover tudo o que estiver a mais na minha cara” – lavou os dentes – “e se calhar devia mesmo passar um fio dental, não vá eu chegar ao escritório e ter um bocadinho de comida entre os dentes e não ter reparado a não ser já a meio de uma reunião importante da qual eu depois vou ter de sair a correr e ir em direcção a uma casa de banho e remover tudo o que estiver a mais na minha boca” – e tomou todo um duche com champôs anti-caspa, sabonetes líquidos, amaciadores e condicionadores, para cabelos lisos, brilhantes e firmes. Maria ficaria triste se soubesse que, a meio de uma reunião de segunda-feira, João tinha passado por uma embaraçosa queda de cabelos…

No carro de João, a música não variava muito; o posto de rádio, esse, era inalterável: “Amor cego FM, a rádio da mulher da sua vida.” Entre tantos êxitos musicais que ouvia nestas manhãs, havia uma melodia que João conhecia de trás para a frente: “Lágrimas de uma sereia”, o último êxito de Marco António, o ‘cantor do Amor’. Os versos, aparentemente simples, carregavam uma mensagem calorosa, com juras de amor eterno e repleta de beijos, carícias e sofás vermelhos com pétalas de um coração cristalino. Estas quadras de loucuras emocionais levavam o coração emotivo de João a telefonar, todas as manhãs, para a Linha do Amor, sediada nos estúdios da Amor Cego FM, a pedir para que passassem as harmonias de Marco António:

- Bom dia! Estou a falar com..?

- João, o apaixonado!

- Olá mais uma vez, meu caro amigo João! Então, como vai a sua relação com a nossa querida… Maria, certo? Sempre lhe ofereceu aquele conjunto de copos de cristal para celebrar o vosso aniversário de casamento?

- Sim! Ela agradeceu muito e disse que me ia recompensar…!

- E já recompensou?

- Ela recompensa-me todos os dias, com o seu sorriso lindo…

- Ora aqui está, nossos caros ouvintes, um exemplo de amor eterno! Todos os dias este nosso amigo João surpreende a sua amada com presentes e gestos de carinho espectaculares! (v.) Ó João, diga lá então – vejam que até rimei! - o que vai querer ouvir esta manhã na sua Amor Cego…

E mais uma vez, João pedia que passassem Marco António e a balada da sereia, naquela telefonia do carro cujas colunas gemiam pelo volume tão alto que tinham de reproduzir! E todos os dias se ouvia aquela balada. E todos os dias se ouvia a conversa da recompensa: ela recompensava-o todos os dias, com o seu lindo sorriso, mas nunca com presentes nem juras de amor eterno. Mas isso não o incomodava. A João incomodava-lhe mais se soubesse que o Fernandinho tinha acordado a mamã às três da tarde a perguntar se hoje iria às aulas. “Raça do miúdo! Se quiser ir às aulas, que pegue numas moedas e apanhe o autocarro! Tem seis anos, já tem idade! Ele que deixe a minha pequena sereia dormir descansada! Coitadinha, anda sempre tão cansada…”

O dia de trabalho no escritório parecia uma eternidade. A única consolação de João cingia-se ao facto de ter enfeitado a sua secretária com fotografias da sua amada: o ecrã do computador tinha a imagem do seu anjo; o pano que permite deslizar o rato do computador tinha sido personalizado e exibia agora uma imagem do seu anjo; o calendário ia ainda em 2010 e dizia, nesse mês: “Amo-te, meu anjo, só porque é Abril!”; a moldura centrada na sua secretária tinha a forma de um coração com uma foto do dia do seu casamento, à porta da igreja, onde aparentemente choveu arroz.

Mas o dia de trabalho no escritório parecia uma eternidade para João... Não lhe bastavam as fotografias, o fundo de ecrã do telemóvel com um poema de Amor que este lhe escrevera, nem as músicas de Marco António que continuava a ouvir, apaixonadamente, no seu transístor. Enquanto não estivesse nos seus braços, enquanto não a sentisse a apertá-lo com a força do amor e a garra de quem ama, não conseguiria sentir-se realizado.

Então nessa segunda-feira João pediu ao seu patrão para sair mais cedo, justificando-se com uma ida ao médico. Pegou no carro e voou, em direcção a casa, aproveitando todos os atalhos que conhecia, até aqueles de sentido proibido. Na viagem, conduzia com a mão direita e aumentava sistematicamente o volume das pobres colunas de som com a esquerda, sempre que ouvia a doce voz de Marco António. Assobiou alguns dos versos daquele cantor, (o.r.e.) que já considerava ser da sua família, declamou poemas de amor e acompanhou a versão portuguesa do “All you need is Love” que passava agora na Amor Cego FM.

Os poemas amorosos que João escrevera para ela na semana anterior tinham agora um lugar especial no seu reportório musical. O carro chiava nas curvas, as colunas calavam-se nas lombas, mas João, esse, não parava nem por um segundo de cantar à sua amada.

Chegou a casa.

Sem avisar.

Vinha-lhe preparar um jantar surpresa.

Atravessou a entrada, a cozinha e a sala, sempre lentamente…. para não a acordar….

Sem querer, pisou um brinquedo do Fernandinho: o ainda firme General Bigodes. Mesmo assim, e entre gemidos silenciosos de uma dor insuportável, o apaixonado caminhou, determinado, acompanhando-se do seu General em direcção ao quarto. Com uma caixa de bombons na mão direita - e o Bigodes no pé esquerdo – cumpriria a penosa mas sempre recompensadora missão de declamar poesia à sua Fofinha. Avançou, pé ante pé, até à porta do quarto, até que inaugurou aquela tarde poética:

“Oh! Meu amor! Oh! Minha amada! Oh! Pétalas de sol que brilham no horizonte ofegante de um amor que não esqueci! Por detrás das grades que nos separam de nos abraçarmos está uma libelinha apaixonada que regozija no meu peito!”

“Ó mar salgado, inundar-te-ei no dia em que morrerei pela minha Maria!”

Mas Maria não respondeu.

João entrou, e Maria não lá estava. Em cima do cinzeiro que agora estava na cama via-se um bilhete amarrotado. João parou. Avançou para o bilhete. Abriu três quartos da folha, começando a ler devagarinho…

“João…”

“Desculpa…”

“Mas às vezes, o amor… tem destas coisas….”

“Hoje acordei e decidi fugir….”

“Conheci um homem fantástico…”

“Chama-se…”

João teve de abrir o último pedaço da folha para poder continuar:

“Chama-se Marco António. É o cantor do Amor. Ele fez-me juras de amor eterno.”

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Rapsódia fadista

O filme que aqui é apresentado foi colocado recentemente a circular pelas redes sociais, e o "feedback" tem sido impressionante. Este é um pequeno exemplo da qualidade fadista portuguesa, da alegria como se canta o Fado pelas casas de Lisboa e da diversidade estilística que as novas gerações têm vindo a trazer para este meio. Tudo isto é genuíno, tudo isto é único.
Agora, silêncio... Que se vai cantar o FADO!


Guitarras Portuguesas:
 - Bernardo Romão
 - Diogo Lucena e Quadros

Viola de Fado:
 - João Veiga
 - Luís Roquette

Baixo:
 - Francisco Gaspar

Fadistas ( por ordem de artista):

- Francisco Salvação Barreto
- Matilde Marçal
- João de Sousa Franco
- Carmo Moniz Pereira
- Francisco Franco de Sousa
- Leonor Granate
- Gonçalo Castelbranco
- Isabel Costa de Sousa
- Manuel Marçal

Desde já um agradecimento especial à produção do vídeo, composta pelos irmãos Carlos e Vasco Vieira!