Estou bem acompanhado...!

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Santos na consciência

A Europa foi em tempos banhada pela fé Cristã, mantendo-se assim os povos unidos numa só crença. O Catolicismo afigurou-se, desde o nascimento de Portugal, como a religião predominante no país. No entanto, e com o passar dos séculos, poucas são as nações que se revelam - ainda – profundamente devotas. À excepção de alguns líderes mundiais, a visibilidade da religião esmoreceu-se e já nem se ouve praticamente falar de Deus.

No entanto, são ainda milhares os devotos em Portugal. A referência das Aparições de Nossa Senhora de Fátima aos três pastorinhos tornou-se o principal motor do Cristianismo no nosso país, revelada esta realidade pelas multidões que visitam, ainda hoje, um dos mais adorados santuários do Mundo. Mas será só em Fátima que os fiéis portugueses se reúnem? Não estará a comunidade cristã a envelhecer? Como será, afinal, que os próprios jovens deste país olham para a religião?

Diogo Cunha tem vinte e um anos, e coloca hoje um ponto de interrogação bastante grande na sua vida. Desde cedo evitou assumir-se como um católico convicto, mesmo apesar de ter frequentado ensinos católicos. No colégio, a religião não era imposta aos alunos. “Havia só umas orações ao almoço ou mais na altura do Natal, mas nada de especial. Havia, no entanto, uma disciplina de Moral, mas que era optativa. Na altura falei com a minha família e preferi não a frequentar.” No entanto, e apesar desta medida, tida como drástica para um rapaz da sua idade, Diogo nunca deixou de rezar todas as noites. “Rezava um Pai-nosso e pedia sempre três desejos para o dia seguinte…” É agora esta dúvida que o confunde diariamente. A sua própria fé desilude-o. Incomodado, Diogo Cunha revela aquilo que mais o aborrece: as pessoas. “Por vezes, o que me faz pôr em causa a existência de Deus são mesmo as pessoas.”

Para o Prior do Estoril, Padre António Teixeira, esta dúvida é perfeitamente normal nos jovens. “Quando alguém se predispõe a encontrar respostas para as suas inquietações, e é confrontado com cristãos que o são apenas de nome – e não de vida, de exemplo, de testemunho - é absolutamente normal que as dúvidas permaneçam e magoem…”. No entanto, o pároco desvaloriza o possível afastamento de Diogo apenas por causa de alguns católicos menos exemplares. É pela dúvida, diz, que se encontram as certezas; por isso, essa interrogação não é mais senão “salutar para todos nós.Com o tempo, conclui-se que Deus está bem acima dos homens, dos contra-testemunhos e de todo o tipo de infidelidades. Basta esperar… mas não desesperar!”



Luís Trocado tem 22 anos, e desde pequeno encara a realidade cristã com seriedade. Educado no seio de uma família católica, este jovem fez questão de se esforçar por manter um ritmo de oração exigente: “Tento ir à missa todos os dias, mas às vezes custa assumir este compromisso.” No entanto - e apesar da sua confiança na vontade de Deus e nas decisões do Papa enquanto chefe da Igreja - Luís teme que os cristãos – as tais “pessoas” de quem Diogo falava - não consigam cumprir a sua missão de espalhar a mensagem de Jesus como quereriam. “Há uma enorme falta de coerência na Igreja. E isso é uma das coisas que mais irrita a quem vê as coisas “de fora”…! Se nós fazemos estupidezes, perdemos credibilidade. A mensagem que estamos a tentar transmitir não se torna credível... Por isso é que o Papa Bento XVI disse que o grande problema da Igreja estava no seio desta, ou seja, dentro da própria comunidade cristã…” Ao longo dos tempos, a Igreja foi cometendo atrocidades - como no caso da Inquisição - pelas quais o próprio Papa pediu perdão. “Nós não nascemos coerentes: nós trabalhamos a coerência…e isso demora tempo. Há que ir crescendo!”, refere Luís, consciente também das dificuldades que o Papa enfrenta por ter de guiar milhões de fiéis.

Desde as últimas décadas, o número de católicos espalhados por todo o Mundo tem diminuído significativamente. Por esta razão, grande parte dos cristãos optaram por se enquadrar numa nova designação: estes são, hoje, os não-praticantes. Não vão à missa com tanta regularidade, afastam-se do compromisso da oração ou simplesmente perdem o ritmo de participação nos acontecimentos das suas comunidades. Neste caso, Pe.António considera absurdo este “facilitismo” dos cristãos:

“Assim como não existem «pais não-praticantes», «mães não-praticantes», «ciclistas não-pedalantes», «católicos não–praticantes» é uma ilusão, cegueira espiritual, facilitismo instalado em gente que se afirma religioso mas que o não é de facto!” No entender deste pároco, a fé não pode deixar nunca de ser cultivada, trabalhada. De outra forma, seria impossível promover o Cristianismo. “Se ainda há, por exemplo, jovens com dúvidas – e que buscam compromisso e exigência nos próprios cristãos - não podemos cair no mero espiritualismo, no engano, no engodo religioso.”



Bernardo Trocado lutou sempre contra estes “espiritualismos” banalizados, procurando realizar um percurso de fé relativamente consciente no seu quotidiano. “Do meu primeiro grupo de amigos, só eu era católico.” Sem qualquer vergonha em assumir que acredita em Deus com tudo o que tem e pode dar, admite que a família foi o grande suporte para aquilo em que se tornou hoje. Admite também, no entanto, que o ambiente em casa foi sempre muito equilibrado: “Nunca tive de participar nas coisas da Paróquia por obrigação; eu sempre fui pelo meu próprio pé, mas com essa base importantíssima que eu trazia dos meus pais.”

Quanto ao seu primeiro grupo de amigos, Bernardo lamenta este afastamento gradual, mas entende que é o rumo natural das coisas. “Houve situações que foram entrando em conflito com a minha própria presença no grupo. Imaginemos… se calhar, uma noite para ir apanhar uma bebedeira, para mim, já não fazia tanto sentido; assim eu evitava estar por lá nessas alturas. Isso aos poucos vai, obviamente, fragilizando as relações. Havia coisas que eu achava que deixavam de fazer sentido para mim, e por isso fui estando menos… “

Tanto Bernardo como Luís têm presente na sua consciência a importância do acompanhamento dos sacerdotes no dia-a-dia dos católicos e, em especial, dos jovens. A este acompanhamento dá-se o nome de direcção espiritual. Os gémeos encaram estas sessões de “conversa” com bastante seriedade; curiosamente, são acompanhados pelo mesmo padre.

“A direcção espiritual não envolve apenas dúvidas espirituais relacionadas com a Igreja e a oração”, diz-nos Luís. “Tem uma dimensão muito mais prática. Tanto posso falar de uma miúda à qual estou a achar graça, como posso falar das minhas aulas, como do meu ritmo de oração.” Ao mesmo tempo, Bernardo reforça as palavras do irmão, referindo que “um católico é católico em tudo da vida; portanto a direcção espiritual serve para se falar de tudo (…)”.

De acordo com os gémeos, esta é então a melhor forma de o Homem se conhecer profundamente. “Eu consegui perceber – com a direcção espiritual – que sou um rapaz muito “sonso”, revela Luís, desabafando que “provavelmente nunca chegaria sozinho a essa conclusão, e nunca saberia que medidas tomar para o combater.”

A realidade do acompanhamento espiritual revela-se, nos dias de hoje, uma tendência crescente no percurso dos jovens católicos de Cascais e do Estoril. Nos últimos dois anos, aumentou exponencialmente a procura de padres dispostos a acompanhar os jovens destas duas comunidades, que cada vez mais se evidenciam no fervor com que encaram a Fé em Deus.

Cascais e Estoril distanciam-se por pouco menos de três quilómetros, mas aproximam-se cada vez mais, através da vida cristã fervorosamente encarada pelos seus paroquianos.

No passado ano sacerdotal, a comunidade acompanhou a partida de mais um jovem da Paróquia do Estoril para o Seminário Patriarcal de São José de Caparide, tornando-se a paróquia com maior número de seminaristas: precisamente quatro.

Ao mesmo tempo, o anterior ano contou com a realização de um Musical em comemoração dos 90 anos de João Paulo II, numa iniciativa da paróquia de Cascais. Mais de três mil pessoas assistiram ao musical, cujo elenco contava exclusivamente com jovens de Cascais e do Estoril. O sucesso do Musical levaria o projecto a expandir-se para as principais salas do país, tendo passado pelo Teatro Tivoli em Lisboa, e pelo Teatro Sá da Bandeira no Porto.

Para Luís Trocado, “a Igreja é uma comunidade a trabalhar em conjunto para a Santidade”. Nesse sentido, o jovem não teve dúvidas em aceitar o convite que lhe foi endereçado para participar no Musical Wojtyla, apesar de ter já muitos outros compromissos na paróquia. Luís é, actualmente, chefe do Coro do Estoril, e ao mesmo tempo catequista e líder de uma equipa de monitores de um campo de férias religioso. No entanto, as razões que o levaram a aceitar também o desafio de entrar no musical falaram mais alto: “no Wojtyla vemos este lado teatral, mas ao mesmo tempo muito humano. É um projecto “saudável”… Não é a típica beatice de Igreja. E isso faz a diferença! Nós sabemos que quando as pessoas nos vão ver, não ficam indiferentes, porque é uma forma especial de lhes levar algo de novo às suas vidas.” Por outro lado, a devoção e entrega com que os jovens da paróquia se têm movido em torno do musical Wojtyla tornou-se impressionante, apenas, pela sua simplicidade. Para Luís, “o que cativa as pessoas é a normalidade de fazer as coisas... Para fazermos coisas boas, não temos de estar sempre a rezar. Eu toco bateria no Musical, mas estou a servir, da mesma forma, toda a Igreja, e em particular a minha paróquia.”

O musical Wojtyla será então um dos espectáculos em exibição no Real Teatro de Madrid durante as comemorações da XXVI Jornada Mundial da Juventude. Luís, como não podia deixar de ser, estará presente.

As Jornadas Mundiais da Juventude – JMJ – são assim outro exemplo da fé cristã vivida pelo mundo fora – neste caso, pelos mais novos “peregrinos ”. Neste encontro mundial, o Papa convida os jovens a reunir-se, em nome de Deus, e por amor a Deus. O objectivo destas Jornadas consiste em congregar jovens de todo o mundo para celebrar e aprender sobre a fé católica; ao mesmo tempo, controem-se pontes de amizade e esperança entre continentes, povos e culturas. O programa das JMJ estende-se até quatro ou cinco dias de presença do Papa junto dos jovens fiéis, onde o líder da Igreja Católica “distribui” gestos de carinho pelos corações de todas as raças; durante os dias vão ocorrendo outros eventos como espectáculos, concertos, visitas aos museus dessa cidade, acompanhando-se sempre um período de catequeses sobre os temas que o próprio Papa colocou em destaque. Tudo isto se passa com uma variedade impressionante de línguas e nacionalidades, e onde nenhum dialecto é esquecido.

O primeiro encontro de Jovens de todo o Mundo ocorreu em 1986, em Roma, com cerca de trezentos mil jovens a aderir ao convite de Karol Wojtyla, o Papa João Paulo II, recentemente beatificado. No ano seguinte, eram já um milhão de jovens em Buenos Aires que recebiam o chefe da Igreja. Aí, o Papa discursou directamente para todos os jovens do Mundo: “vós sois a esperança do Papa, a esperança da Igreja!” Este encontro mundial realiza-se sempre em cidades diferentes todos os anos, e o convite feito aos jovens é sempre recebido com muita alegria. O maior encontro da História deu-se em Manila, nas Ilhas Filipinas, no ano de 1995: a presença de quatro milhões de pessoas revelava, assim, o espírito de união da Igreja Católica, que agora movia os mais novos… como nunca o fizera antes.

A frase de São Paulo “Enraizados em Cristo, firmes na Fé” dá o mote para as celebrações do vigésimo sexto aniversário das JMJ, que se realizarão, este ano, na cidade de Madrid, com a presença do Papa Bento XVI, que esteve também já presente na anterior Jornada em Sidney.

A paróquia do Estoril afigura-se, desta vez, como uma das mais activas de Portugal, inscrevendo quase trezentos jovens nos últimos três meses. Para o Prior do Estoril, padre António, “poderiam ainda vir muitos mais. É essencial que todos os jovens sejam parte integrante desta festa. Poderiam vir muitos mais porque o resultado seria outro. Quantos mais se deixarem encontrar por Deus, em Cristo, quantos mais se deixarem enriquecer pelos dons e talentos dos outros, quantos mais se deixarem desinstalar e arriscar viver algo que desconhecem, maior importância terão depois nas vidas das pessoas com quem se vão cruzar.”

O fenómeno das Jornadas Mundiais da Juventude provoca, inevitavelmente, experiências inesquecíveis em todos os participantes. No entanto, para este fervoroso sacerdote, o futuro das sociedades de todo o Mundo depende da forma como os jovens encarem, não só a Fé cristã, mas como se consciencializem da importância da vida em sociedade; e as pequenas localidades beneficiariam bastante com todo esse impacto que os jovens causassem: “poderiam - e deveriam - ser mais, para que também o Estoril fosse “mais”…mais de Deus, mais da Igreja, mais da verdade, mais da justiça, mais da caridade, mais do amor…”



Porém, Diogo Cunha não se inscreveu ainda nestas Jornadas Mundiais da Juventude. As suas prioridades são neste momento outras. Interessa-lhe, primeiro, compreender as motivações dos cristãos. “Quando eu rezava todas as noites, acreditava que tinha “aquele” momento com Deus. E na verdade, até há bem pouco tempo, acreditei nisso…” No entanto, “a cegueira das pessoas revolta-me”. Os seus avós, assumidamente católicos, são também um dos motivos da revolta deste jovem; para ele, a maior frustração acaba por ser a forma como as crenças destes se tornaram “quase numa obsessão, num fanatismo”, quando sentiram a necessidade de “puxar” pelo seu neto: “eu sinto que eles perdem o raciocínio, quando discutimos sobre Deus”. Mais confuso ainda, Diogo revela: “É óbvio que a Fé não tem nada de racional, mas fico revoltado pelo facto de não poder acreditar em Deus de um modo seguro e convincente…!” O desabafo repousa, portanto, no medo de Diogo de se “tornar estúpido e cego.”, no que toca à sua fé.

São, assim, os amigos que o levam a carregar ainda esta “cruz” na consciência. Há pouco mais de um ano, Diogo colocou sobre si a hipótese de se vir a baptizar. Com o intuito de pôr à prova a sua própria fé, considerou que uma preparação para o Sacramento do Baptismo pudesse retirar todas as suas dúvidas. Ao mesmo tempo, não via a longo prazo grandes objecções ao seu percurso cristão, apesar das vicissitudes. “Os meus grandes amigos são quase todos católicos e são pessoas que eu admiro e em quem confio. Logo, se acreditam tanto em Deus, os motivos devem ser perfeitamente válidos”, diz.

Simultaneamente, o receio de Diogo em fazer bem as coisas não implica que esqueça o essencial: “ Eu defendo os valores da Igreja. Por isso não acho que seja relevante, nem tão-pouco conclusivo, acreditar só em Deus… Interessa acreditar em tudo.” No entanto, é bastante crítico em relação à sua passividade, que diz ser um grande entrave a todo este processo. “Realmente, não sei se é um confronto que quero ter já…” Quanto ao facto de se poder vir a tornar um católico fervoroso, a resposta foi simples: “acho que sou uma pessoa aberta e, por isso não coloco nada de parte…embora ache muito difícil que isso aconteça.”



A educação de cada um tornou-se a principal semelhança entre os três jovens. Diogo frequentou colégios portugueses e ingleses. Os gémeos Trocado concluíram o secundário ainda em escolas salesianas. Na verdade, toda a sua formação os levou a encarar a vida de diferentes maneiras. Mas é justo que a sociedade os coloque num outro pedestal, pelo simples facto de os seus valores os levarem a reflexões tão constantes e tão profundas. O importante é que a sociedade continue a construir jovens como estes para que permaneçam bem vivas as próximas gerações.

Provavelmente, as dúvidas de Diogo permanecerão durante mais uns tempos. Talvez com a ajuda de Luís Trocado consiga porventura chegar a alguma conclusão. Talvez uma “conversa” em direcção espiritual com o Padre António o ilumine. Provavelmente, quando Bernardo Trocado terminar o seu curso de Seminarista e for ordenado Sacerdote, procurará este Diogo Cunha para o converter num católico fervoroso. No fim de contas, é preciso que eles se conheçam primeiro, para lá destas linhas… Mas guardemos essas ambições para 2015, o ano em que o Padre Bernardo (um dos quatro seminaristas do Estoril) iniciará o seu percurso sacerdotal.

Estes são os jovens dos dias de hoje. Uns mais esclarecidos do que outros, quanto às suas certezas; uns mais convictos do que outros, no que toca aos seus compromissos. No fim de contas são, todos eles, exemplo para uma geração “à rasca” de consciência, de bom-senso, de princípios básicos. Ninguém lhes poderá apontar o dedo por serem irresponsáveis ou simplesmente indiferentes ao que os rodeia… Todos lutam por encontrar aquilo em que são verdadeiramente eles próprios. Procuram ser, todos eles, “santos na consciência”, independentemente das suas crenças ou convicções; e este é, verdadeiramente, o caminho para a Salvação da nossa sociedade.

Gonçalo Castelbranco

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Podcast2

Eis uma das três partes do meu trabalho para a disciplina de Novas Expressões de Rádio.

sábado, 18 de junho de 2011

Ser família

Ser família
É um fenómeno. As famílias são um fenómeno. Ser família é um dom impressionante, talvez pela sua simplicidade. Por mais ou menos unidas que pareçam, são sem dúvida a base sólida para toda a nossa vida. E é, ao mesmo tempo, a nossa missão e a nossa sorte tê-la e poder cultivá-la...
No entanto, torna-se preocupante a frequência com que asseguramos que “hoje em dia as coisas são diferentes”, numa crença inabalável de que ser família já não é como era antigamente. Fogem-nos estas ideias porque a sociedade o exige…Mas também temos de exigir mais de nós!
Daí que o título deste texto seja “ser família”. Talvez se eu fosse mais extremista acrescentaria a expressão “Aprender a…”. Não o fiz, por um lado, porque não acho que seja preciso ensinarmos ninguém sobre o valor da família. Podemos gostar mais de um primo do que de outro, mas nunca nos esquecemos de nenhum. E por outro lado porque aprender implica falhar. Se o menino nunca largar a mão da Mãe por não querer correr o risco de cair de rabo no chão da sala, nunca vai andar “bem”, sozinho. Por isso, esta não é uma lição de vida. Quem me dera achar sequer que poderia ensinar algo a alguém! Estas linhas são apenas ideias de um filho que faz estupidezes todos os dias…
Aos filhos:
- Tudo o que se aprende quando crescemos vem de tudo o que nos rodeia. A vantagem de ter 20 anos é a de que ainda temos – ou devemos ter - “pachorra” para ouvir coisas novas, para discutir assuntos difíceis, para levar descomposturas dos outros. Talvez aos 70 anos já seja aceitável que essa “aptidão” esteja arrefecida. Ao mesmo tempo, as idades “verdes” são fenomenais. Faz-se o que se quer porque se vai ganhando essa confiança e “liberdade”. Lembro-me que adorava dormir em casa dos meus primos… mas só podia lá ficar se tivesse os trabalhos de casa feitos! O que é que isto não tem de fenomenal? Eu cumpro a minha parte, e o negócio é praticamente garantido!
É nesta idade que dá gozo, também, fazer estupidezes… E esta é a melhor parte. Podemos falhar, falhar, falhar, falhar! Fica tudo furioso, mas azar! “Estou no meu direito!”
Só há aqui um “pequeno” ponto. As estupidezes que se fazem não podem sobrepor-se àquilo para o qual fomos educados. Se o meu erro me vai fazer tropeçar na educação que tenho, não posso deixar. Consegue-se combater tudo menos a consciência; e essa quando pesa… pesa muito! Não há nada pior do que quebrar a confiança da mãe ou do pai. É humilhante e vergonhoso… é como ser apanhado a roubar chocolates no Continente. Sem sequer falar do facto de que isso, pura e simplesmente, não se faz! É tão bom sentir que fizemos a nossa parte e ao mesmo tempo nos pudemos descuidar nalguns momentos! Mas fraquejar em assuntos-base e atrofiar só pelo medo de perder alguns “amigos” é tão errado…tão discrepante…!

Ser filho é bestial; muito mais ainda nos dias de hoje. É fenomenal ver que os mais velhos se preocupam connosco, e ver que os mais novos nos querem como exemplo. Guiamos e somos guiados. Fazemos companhia e sentimo-nos acompanhados! A nossa função principal é… estar. Simplesmente estar. Não desaparecer, não achar que os outros grupos são mais importantes, que precisam mais de nós. Não há ninguém que precisa mais de nós do que aqueles que nos criaram…Ser família é sermos um corpo presente, constante; e se tivermos a noção de que a nossa opinião e participação nas questões familiares têm um valor insubstituível, já demos um grande passo. Resta só ir buscar esta “pachorra” para estarmos e sermos um corpo presente…ao nosso passado; talvez à altura em que não sabíamos andar… aí, todos tiveram “pachorra” para nós!
Aos pais:
- A posição por si só é vantajosa! A alegria de se ser pai é maior ainda do que a de ser filho! E Não é um fardo, é um cargo. É um estatuto que se assume e que se quis assumir e, por isso, é nosso. É uma relíquia que ninguém nos pode tirar, e é - provavelmente – a melhor sensação do mundo! Por isso, qual é a ideia de não a viver diariamente? E qual é o drama em vivê-lo, diariamente, com “ganas”? Antigamente, é que era dramático! Ver um filho partir para a faculdade e só voltar a falar com ele se ele quisesse responder à nossa carta… Irra! Que drama!
Agora? Estão tão perto… E querem estar perto dos pais! Como é natural, vão querendo “afastar-se” à medida que crescem, à medida que podem ter mais “liberdade”. Mas não há nada melhor para um filho do que voltar para casa. Sentir companhia! Não há nada melhor do que estar em casa e poder falar com o pai e a mãe sobre o dia, sobre os estudos, sobre as “noitadas”, sobre os namoros e sobre… sobre tudo. Faz parte! E este incentivo pode e tem de partir, não só mas também, daqueles que gerem este negócio da família!
Peço que não tomem estas linhas como uma tentativa de encontrar verdades supremas. Não o são nem por sombras. Sinto, pelo que vejo!
Sinto, pelo que vejo, uma pequena pedrinha no sapato das famílias, e que “baralha” as cabeças dos pais e dos filhos: a falta de limites. Não há nada de mal em cortar as asas a algumas asneiras ou “tiques” dos filhos… aliás, é essa a grande dificuldade e a grande missão dos pais! É importante que eu, como filho, saiba que tenho limites, e que conheça os meus limites. Enquanto vivo no mesmo tecto que os meus pais, ou entro no jogo como eles o delimitaram, ou então não jogo – e saio de casa, e vou viver para não-sei-onde. É duro, mas não é assim tanto. É a razão de ser da casa de família. Se eu vou a casa de um amigo e ele me diz que eu não posso falar alto, eu não vou falar alto – porque conheço os meus limites. Então, se os meus pais me disserem “menino, não se berra”, porque raio hei-de eu dizer que “faço o que eu quero!”? E se o disser, talvez então a resposta tenha de vir acompanhada de um castigo ou de uma “puniçãozita”… faz parte do jogo! Por isso resta que o juiz saiba colocar bem as regras em cima da mesa e as saiba cumprir! De resto, basta simplesmente… estar. Estar, e desfrutar!
Falar de um pai que ama um filho não é tabu. O que é difícil, para um filho, é perceber o que é que uma palmada tem de amoroso! Para isso, basta que o filho sinta no pai um confidente, o primeiro poiso, um corpo presente – e estável. Maior drama do que o filho fumar talvez seja não contar ao pai que o faz (se tiver idade!). Ao mesmo tempo, confiar cegamente em alguém implica, incondicionalmente, muitas horas de conversas, muita cumplicidade, muitas “dicas”… Não é possível eu contar a minha vida a alguém com quem nunca falei sobre nada sério! Eu tenho de sentir que é uma conversa saudável, que me ajuda ou que me leva a tomar uma decisão que parecia mais difícil. Para isso, a receita – e repito-me irritantemente muito – é simples: é Estar!
E é tão bom fazer parte de uma família. E digo-o porque adoro. Digo-o porque em todas as famílias se fala a mesma língua e não nos arriscamos a fazer “partes-gagas”.

E digo-o porque adorava ver – e sentir – que há mais famílias a viver assim; com mais ou menos dramas, mas assim… Que há mais gente, como eu, ansiosa por cultivar cada vez mais este Dom!

terça-feira, 12 de abril de 2011

Eu conto-vos um conto!

Uma canção de Amor


Segunda-feira. João decidiu naquela manhã ignorar o despertador que lhe berrava desde as seis horas. Quis sentir-se rebelde, sem regras, sem horários para nada. Ali, deitado na cama ao lado da sua eterna Maria, queria desfrutar de tudo o que a vida lhe tinha dado. João observava o seu sono profundo, contemplando as suas feições belas e o seu perfil de sereia.

Do outro lado do colchão, a sua eterna Maria ressonava profundamente… Naquela mesa-de-cabeceira permanecia a luz de um candeeiro, acesa desde a noite anterior, que fazia companhia a um cinzeiro sobrelotado. Era uma mesa redonda, com uns restos de chocolate das várias vésperas, que ia estando inclinada para dentro, para o lado da cama. De tal forma inclinada que o comando da TV foi acompanhando o desnível em direcção à cama para se ir encostar ao nariz de Maria. A imagem de desconforto era de tal forma evidente que, se o Fernandinho ou a Belimundazinha decidissem entrar pelo quarto dentro, provavelmente se perguntariam por onde é que a mamã conseguiria respirar…

Mas a verdade é que respirava. Senão, não ressonaria tanto….

A cama tremia com o ressonar de Maria. Todo aquele corpo pesadão dançava com uma violência ritmada. Inspirava, e depois…. Ex...pi…ra…va… Inspirava, deixava o sol brilhar lá fora, os pássaros cantar, as crianças correr pela casa, deixava DaVinci terminar a capela Sistina com todo o tempo do Mundo, deixava até Pedro Abrunhosa inventar uma música nova em que mais de quatrocentas palavras se uniam e formavam uma melodia anarquicamente complexa e talvez até demais para os Deolinda… Mas depois…ex…pi…ra…va! Trevas! Trovões! Guerra dos Mundos! Invasões napoleónicas com tanques de guerra! Uma Kalashnikov a disparar sem alvo! Pim-pam-PUM! Tsunami! Cá vai bomba!

Mas João já estava atrasado! Não podia continuar na cama porque alguém tinha de trazer o dinheiro no fim do mês, e essa não poderia ser uma tarefa para a sua Maria, coitadinha, que tinha sempre tanto sono… Por isso, deixou a “ronha” que já se prolongava há dois minutos e cinquenta e oito segundos, tirou os óculos da sua mesinha-de-cabeceira e arrumou um bocadinho melhor o livro que lá estava, só para não cansar a sua amada quando ela acordasse. Ergueu as costas e sentou-se com os pés para fora da cama, sacudiu logo a almofadinha e espreguiçou-se baixinho, para não incomodar a sua bela adormecida, que ele tanto contemplava…. Era incrível, para João, observar que a sua Mariazinha conseguia estar cada vez mais bonita e saudável com o passar dos anos! E ali ficou, cerca de vinte e cinco minutos, a contemplar a sua mais-que-tudo, a sua florzinha, o seu texugo, a sua sereia delgadinha e perfeitinha…

Entretanto, Fernandinho e Belimundazinha brincavam aos Legos na sala. Mas só enquanto a mamã inspirava… Depois disso, a diversão passava por reconstruir o castelo do General Bigodes e esperar pelo novo terramoto!

A estadia de João na casa de banho demorou catorze segundos e picos. Aí, fez a barba – “que não tenho mas preciso de tirar, não vá isto começar a crescer a meio de uma reunião importante e depois eu vou ter de sair a correr e ir em direcção a uma casa de banho e remover tudo o que estiver a mais na minha cara” – lavou os dentes – “e se calhar devia mesmo passar um fio dental, não vá eu chegar ao escritório e ter um bocadinho de comida entre os dentes e não ter reparado a não ser já a meio de uma reunião importante da qual eu depois vou ter de sair a correr e ir em direcção a uma casa de banho e remover tudo o que estiver a mais na minha boca” – e tomou todo um duche com champôs anti-caspa, sabonetes líquidos, amaciadores e condicionadores, para cabelos lisos, brilhantes e firmes. Maria ficaria triste se soubesse que, a meio de uma reunião de segunda-feira, João tinha passado por uma embaraçosa queda de cabelos…

No carro de João, a música não variava muito; o posto de rádio, esse, era inalterável: “Amor cego FM, a rádio da mulher da sua vida.” Entre tantos êxitos musicais que ouvia nestas manhãs, havia uma melodia que João conhecia de trás para a frente: “Lágrimas de uma sereia”, o último êxito de Marco António, o ‘cantor do Amor’. Os versos, aparentemente simples, carregavam uma mensagem calorosa, com juras de amor eterno e repleta de beijos, carícias e sofás vermelhos com pétalas de um coração cristalino. Estas quadras de loucuras emocionais levavam o coração emotivo de João a telefonar, todas as manhãs, para a Linha do Amor, sediada nos estúdios da Amor Cego FM, a pedir para que passassem as harmonias de Marco António:

- Bom dia! Estou a falar com..?

- João, o apaixonado!

- Olá mais uma vez, meu caro amigo João! Então, como vai a sua relação com a nossa querida… Maria, certo? Sempre lhe ofereceu aquele conjunto de copos de cristal para celebrar o vosso aniversário de casamento?

- Sim! Ela agradeceu muito e disse que me ia recompensar…!

- E já recompensou?

- Ela recompensa-me todos os dias, com o seu sorriso lindo…

- Ora aqui está, nossos caros ouvintes, um exemplo de amor eterno! Todos os dias este nosso amigo João surpreende a sua amada com presentes e gestos de carinho espectaculares! (v.) Ó João, diga lá então – vejam que até rimei! - o que vai querer ouvir esta manhã na sua Amor Cego…

E mais uma vez, João pedia que passassem Marco António e a balada da sereia, naquela telefonia do carro cujas colunas gemiam pelo volume tão alto que tinham de reproduzir! E todos os dias se ouvia aquela balada. E todos os dias se ouvia a conversa da recompensa: ela recompensava-o todos os dias, com o seu lindo sorriso, mas nunca com presentes nem juras de amor eterno. Mas isso não o incomodava. A João incomodava-lhe mais se soubesse que o Fernandinho tinha acordado a mamã às três da tarde a perguntar se hoje iria às aulas. “Raça do miúdo! Se quiser ir às aulas, que pegue numas moedas e apanhe o autocarro! Tem seis anos, já tem idade! Ele que deixe a minha pequena sereia dormir descansada! Coitadinha, anda sempre tão cansada…”

O dia de trabalho no escritório parecia uma eternidade. A única consolação de João cingia-se ao facto de ter enfeitado a sua secretária com fotografias da sua amada: o ecrã do computador tinha a imagem do seu anjo; o pano que permite deslizar o rato do computador tinha sido personalizado e exibia agora uma imagem do seu anjo; o calendário ia ainda em 2010 e dizia, nesse mês: “Amo-te, meu anjo, só porque é Abril!”; a moldura centrada na sua secretária tinha a forma de um coração com uma foto do dia do seu casamento, à porta da igreja, onde aparentemente choveu arroz.

Mas o dia de trabalho no escritório parecia uma eternidade para João... Não lhe bastavam as fotografias, o fundo de ecrã do telemóvel com um poema de Amor que este lhe escrevera, nem as músicas de Marco António que continuava a ouvir, apaixonadamente, no seu transístor. Enquanto não estivesse nos seus braços, enquanto não a sentisse a apertá-lo com a força do amor e a garra de quem ama, não conseguiria sentir-se realizado.

Então nessa segunda-feira João pediu ao seu patrão para sair mais cedo, justificando-se com uma ida ao médico. Pegou no carro e voou, em direcção a casa, aproveitando todos os atalhos que conhecia, até aqueles de sentido proibido. Na viagem, conduzia com a mão direita e aumentava sistematicamente o volume das pobres colunas de som com a esquerda, sempre que ouvia a doce voz de Marco António. Assobiou alguns dos versos daquele cantor, (o.r.e.) que já considerava ser da sua família, declamou poemas de amor e acompanhou a versão portuguesa do “All you need is Love” que passava agora na Amor Cego FM.

Os poemas amorosos que João escrevera para ela na semana anterior tinham agora um lugar especial no seu reportório musical. O carro chiava nas curvas, as colunas calavam-se nas lombas, mas João, esse, não parava nem por um segundo de cantar à sua amada.

Chegou a casa.

Sem avisar.

Vinha-lhe preparar um jantar surpresa.

Atravessou a entrada, a cozinha e a sala, sempre lentamente…. para não a acordar….

Sem querer, pisou um brinquedo do Fernandinho: o ainda firme General Bigodes. Mesmo assim, e entre gemidos silenciosos de uma dor insuportável, o apaixonado caminhou, determinado, acompanhando-se do seu General em direcção ao quarto. Com uma caixa de bombons na mão direita - e o Bigodes no pé esquerdo – cumpriria a penosa mas sempre recompensadora missão de declamar poesia à sua Fofinha. Avançou, pé ante pé, até à porta do quarto, até que inaugurou aquela tarde poética:

“Oh! Meu amor! Oh! Minha amada! Oh! Pétalas de sol que brilham no horizonte ofegante de um amor que não esqueci! Por detrás das grades que nos separam de nos abraçarmos está uma libelinha apaixonada que regozija no meu peito!”

“Ó mar salgado, inundar-te-ei no dia em que morrerei pela minha Maria!”

Mas Maria não respondeu.

João entrou, e Maria não lá estava. Em cima do cinzeiro que agora estava na cama via-se um bilhete amarrotado. João parou. Avançou para o bilhete. Abriu três quartos da folha, começando a ler devagarinho…

“João…”

“Desculpa…”

“Mas às vezes, o amor… tem destas coisas….”

“Hoje acordei e decidi fugir….”

“Conheci um homem fantástico…”

“Chama-se…”

João teve de abrir o último pedaço da folha para poder continuar:

“Chama-se Marco António. É o cantor do Amor. Ele fez-me juras de amor eterno.”

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Rapsódia fadista

O filme que aqui é apresentado foi colocado recentemente a circular pelas redes sociais, e o "feedback" tem sido impressionante. Este é um pequeno exemplo da qualidade fadista portuguesa, da alegria como se canta o Fado pelas casas de Lisboa e da diversidade estilística que as novas gerações têm vindo a trazer para este meio. Tudo isto é genuíno, tudo isto é único.
Agora, silêncio... Que se vai cantar o FADO!


Guitarras Portuguesas:
 - Bernardo Romão
 - Diogo Lucena e Quadros

Viola de Fado:
 - João Veiga
 - Luís Roquette

Baixo:
 - Francisco Gaspar

Fadistas ( por ordem de artista):

- Francisco Salvação Barreto
- Matilde Marçal
- João de Sousa Franco
- Carmo Moniz Pereira
- Francisco Franco de Sousa
- Leonor Granate
- Gonçalo Castelbranco
- Isabel Costa de Sousa
- Manuel Marçal

Desde já um agradecimento especial à produção do vídeo, composta pelos irmãos Carlos e Vasco Vieira!

segunda-feira, 28 de março de 2011

Crítica a um livro de Mário de Carvalho

Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto

Mário de Carvalho

Edições Caminho



Uma viagem ao ‘Portugal dos pequeninos’



Seria realmente interessante trocar algumas ideias sobre este assunto ‘puxado’ por Mário de Carvalho: a sociedade. Esta é uma obra baseada nas pessoas, e não no enredo. O autor escolhe personagens típicas dos dias de hoje, que dão a sensação de serem pessoas reais, à semelhança daqueles que pertencem aos pequenos ‘mundos’ dos próprios leitores. É quase inevitável ouvir-se daqueles que já leram o livro algo como ‘este Joel é igual ao meu amigo Carlos, que também tinha sempre umas histórias muito estranhas…’ ou mesmo que ‘esta Eduarda parece a minha ex-namorada!’

A novela relatada pelo autor tem como fio condutor a vida de Joel Neves, um “cinquentão e de físico para o esguio”, pai de um rapazinho delinquente que é incrivelmente ‘apaparicado’ pela sua mãe. Esta figura maternal – Cremilde – acompanha a vida do filho a todo o tempo, dedicando-se a cuidar dele enquanto o marido exerce as suas funções de “bibliotecário” para as quais terá sido ‘promovido’. Pelo caminho, aparece Eduarda Galvão que, sem acrescentar detalhe algum, se afigura como a nora que ninguém deseja. As páginas vão passando, e os acontecimentos da vida do protagonista vão-se misturando com outras vidas, com outros (interessantes) dramas familiares, profissionais e políticos.

Mário de Carvalho avisa os leitores, logo antes do início da obra, que “este livro contém particularidades irritantes para os mais acostumados. Ainda mais para os menos. Tem caricaturas. Humores. Derivações. E alguns anacolutos.”.

E é verdade. Especialmente, a parte das descrições “irritantes” e exageradamente completas que o autor faz questão de aplicar na sua escrita. Não é menos verdade, no entanto, que as descrições são incrivelmente esclarecedoras e enriquecem a obra em toda a sua extensão; se Mário de Carvalho não as tivesse explorado desta maneira, decerto este seria um dos livros mais aborrecidos da História…

Os lugares, as gentes e os momentos são, então, de tal maneira bem descritos que o leitor até se sente parte da história. Sente-se tão omnisciente quanto o próprio narrador, um exímio avaliador de tudo o que envolve a novela. As suas apreciações no desenrolar dos acontecimentos revelam-se tão intensas que Mário de Carvalho acaba por gozar com tudo. Nem o vinho que se encontra à mesa de uma tasca castiça desinteressa ao narrador: sim, aquela “horrenda zurrapa, mas que ali, convencionalmente, ganhava foros de tinto-da-casa-como-se-não-encontra-noutro-lugar,-vindo-especialmente-dum-armazém-de-Palmela.” O humor aplicado na narrativa é tudo menos suave, e ele próprio faz questão de que assim o seja.

Aliado às descrições, o vocabulário utilizado pelo escritor afigura-se incrivelmente requintado, ao mesmo tempo que apresenta uma narrativa simpaticamente explicativa onde não permite que se perca «o fio à meada». Esta é a particularidade mais engraçada do livro: Mário de Carvalho pretende descrever as ‘personagens’ e os lugares da nossa sociedade, e fá-lo muitas vezes de uma forma muito extensa – e até pejorativa; porém, quando sente que está a ser demasiado descritivo e minucioso, regressa ao assunto contextualizando a descrição e explicando, sempre que necessário, o porquê de tanta precisão.

O título da obra não é, à partida, muito apelativo. A opção por este “Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto” dá a sensação de que o livro se vai encher de divagações, opiniões carnívoras sobre assuntos delicados, ou que simplesmente o autor quer esclarecer assuntos pendentes da sua vida pessoal. Na verdade, o título é parte integrante da obra. Aliás, o título suporta toda a obra, porque se encontra por diversas vezes nas linhas – mais tardias – do livro. Por outro lado, toda esta narrativa é premiada com discussões ‘de cafés’ e com personagens que fazem questão de ‘opinar’ sobre tudo e sobre todos, sempre convictos de que ter razão é a razão das suas existências.

No fim de contas, quem tem razão é Mário de Carvalho. As sociedades contemporâneas encheram-se de ‘personagens’ complexas e intrigantes, que se envolvem diariamente em peripécias esquisitas e, por vezes, até humilhantes. Este livro será, então, o condensar de todas as caricaturas da sociedade - portuguesa - num enredo realístico e verdadeiramente interessante. Com uma pitada de humor, por vezes até negro, o autor conta a história de um “Portugal dos pequeninos” onde tudo e todos são tema de conversa.

Era bom que trocássemos umas ideias sobre este assunto de duzentas e treze páginas…