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segunda-feira, 28 de março de 2011

Crítica a um livro de Mário de Carvalho

Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto

Mário de Carvalho

Edições Caminho



Uma viagem ao ‘Portugal dos pequeninos’



Seria realmente interessante trocar algumas ideias sobre este assunto ‘puxado’ por Mário de Carvalho: a sociedade. Esta é uma obra baseada nas pessoas, e não no enredo. O autor escolhe personagens típicas dos dias de hoje, que dão a sensação de serem pessoas reais, à semelhança daqueles que pertencem aos pequenos ‘mundos’ dos próprios leitores. É quase inevitável ouvir-se daqueles que já leram o livro algo como ‘este Joel é igual ao meu amigo Carlos, que também tinha sempre umas histórias muito estranhas…’ ou mesmo que ‘esta Eduarda parece a minha ex-namorada!’

A novela relatada pelo autor tem como fio condutor a vida de Joel Neves, um “cinquentão e de físico para o esguio”, pai de um rapazinho delinquente que é incrivelmente ‘apaparicado’ pela sua mãe. Esta figura maternal – Cremilde – acompanha a vida do filho a todo o tempo, dedicando-se a cuidar dele enquanto o marido exerce as suas funções de “bibliotecário” para as quais terá sido ‘promovido’. Pelo caminho, aparece Eduarda Galvão que, sem acrescentar detalhe algum, se afigura como a nora que ninguém deseja. As páginas vão passando, e os acontecimentos da vida do protagonista vão-se misturando com outras vidas, com outros (interessantes) dramas familiares, profissionais e políticos.

Mário de Carvalho avisa os leitores, logo antes do início da obra, que “este livro contém particularidades irritantes para os mais acostumados. Ainda mais para os menos. Tem caricaturas. Humores. Derivações. E alguns anacolutos.”.

E é verdade. Especialmente, a parte das descrições “irritantes” e exageradamente completas que o autor faz questão de aplicar na sua escrita. Não é menos verdade, no entanto, que as descrições são incrivelmente esclarecedoras e enriquecem a obra em toda a sua extensão; se Mário de Carvalho não as tivesse explorado desta maneira, decerto este seria um dos livros mais aborrecidos da História…

Os lugares, as gentes e os momentos são, então, de tal maneira bem descritos que o leitor até se sente parte da história. Sente-se tão omnisciente quanto o próprio narrador, um exímio avaliador de tudo o que envolve a novela. As suas apreciações no desenrolar dos acontecimentos revelam-se tão intensas que Mário de Carvalho acaba por gozar com tudo. Nem o vinho que se encontra à mesa de uma tasca castiça desinteressa ao narrador: sim, aquela “horrenda zurrapa, mas que ali, convencionalmente, ganhava foros de tinto-da-casa-como-se-não-encontra-noutro-lugar,-vindo-especialmente-dum-armazém-de-Palmela.” O humor aplicado na narrativa é tudo menos suave, e ele próprio faz questão de que assim o seja.

Aliado às descrições, o vocabulário utilizado pelo escritor afigura-se incrivelmente requintado, ao mesmo tempo que apresenta uma narrativa simpaticamente explicativa onde não permite que se perca «o fio à meada». Esta é a particularidade mais engraçada do livro: Mário de Carvalho pretende descrever as ‘personagens’ e os lugares da nossa sociedade, e fá-lo muitas vezes de uma forma muito extensa – e até pejorativa; porém, quando sente que está a ser demasiado descritivo e minucioso, regressa ao assunto contextualizando a descrição e explicando, sempre que necessário, o porquê de tanta precisão.

O título da obra não é, à partida, muito apelativo. A opção por este “Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto” dá a sensação de que o livro se vai encher de divagações, opiniões carnívoras sobre assuntos delicados, ou que simplesmente o autor quer esclarecer assuntos pendentes da sua vida pessoal. Na verdade, o título é parte integrante da obra. Aliás, o título suporta toda a obra, porque se encontra por diversas vezes nas linhas – mais tardias – do livro. Por outro lado, toda esta narrativa é premiada com discussões ‘de cafés’ e com personagens que fazem questão de ‘opinar’ sobre tudo e sobre todos, sempre convictos de que ter razão é a razão das suas existências.

No fim de contas, quem tem razão é Mário de Carvalho. As sociedades contemporâneas encheram-se de ‘personagens’ complexas e intrigantes, que se envolvem diariamente em peripécias esquisitas e, por vezes, até humilhantes. Este livro será, então, o condensar de todas as caricaturas da sociedade - portuguesa - num enredo realístico e verdadeiramente interessante. Com uma pitada de humor, por vezes até negro, o autor conta a história de um “Portugal dos pequeninos” onde tudo e todos são tema de conversa.

Era bom que trocássemos umas ideias sobre este assunto de duzentas e treze páginas…

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